Términos inacabados – Episódio 10
Salvando Jerusa
Afanes passou a considerar que tinha cometido um grande erro. Colocar Jerusa em contato com o Colecionador sem tê-lo avisado poderia expor todos. Um perigo que ele não dimensionou nada bem.
“Traição, era a última das vicissitudes que esperava de mim mesmo. O traidor tem uma característica infame: ele geralmente trai alguém que deveria merecer máxima confiança. E o traidor tem uma falsa ambiguidade.
O quinta coluna sabe que está sendo falso e tem consciência de que terá algum remorso. Pode ser passageiro e nada que uma dose de conhaque de alcatrão não cure. Mas o traíra é impetuoso, governado por um impulso incontrolável. Prometo que não vou escrever o “Tratado geral do Traíra Arrojado”. Nem o ensaio “Como trair e conservar a consciência tranquila.”
Eu só sei que é um hábito, quer dizer a traição vira um modo de viver. Começa com a ideia de que as pessoas são instrumentos. Depois é que vira uma segunda natureza. Na tradição nativa tem uma equivalência com o puxa-saco profissional.
A traição é a mãe da corrupção, da infidelidade e da má consciência. Mas será que existe uma traição involuntária? Ou uma traição do bem? Uma traição que acabe, no final, levando o traído para uma situação melhor que a anterior? Por que finalmente ele se torna um conhecedor de com quem está lidando? E se uma traição salvar uma vida?
‘Sei que esse vigarista do Braz não só traiu como está manejando as coisas para ferrar a moça. Mas ao mesmo tempo ele foi meu chapa. Já me ajudou. Além disso, ou especialmente, ele hoje tem poder e grana.’
A quem eu devo mais lealdade? A Jerusa que pouco conheço e me confidenciou coisas? Além disso parece ser uma mulher de alta dignidade. Ou ao tolo que me jurou vantagens se eu o ajudasse?
Não sei se os filósofos gregos ou os profetas se metiam em encrencas e dilemas morais desse tipo. Mas acho que eram dessas situações, aparentemente banais, que nasceram grandes ensaios.
O valor da lealdade raramente é bem avaliado. É como é equilíbrio, só se valoriza quando se perde.”
‘Vou avisá-lo.’
Insistentemente, por horas, ele tentou ligar no telefone fixo, mas Ernesto Ficci não atendeu. Se quisesse falar com ele teria que fechar a banca e voar até o Cosme Velho.
Poderia pedir para o garçom do famoso Bar Antônio para olhar a banca. Fecha-la seria romper uma promessa que ele mesmo fizera.
Antônio era o bar mais frequentando da região, já recebeu músicos, atores e escritores célebres. Agora havia virado um ponto de encontro decadente.
Seu conhecido de anos, o garçom Salobral Volta, sabia de tudo, e já ouvira todas as histórias do bar, até pensou em escrever um livro. Era uma memória vida da tradição oral da boemia carioca.
‘Posso ficar, sim. Você vai demorar? E o seu amigo?’
‘Pois é Salo, pisei feio na bola’
‘Você entregou o homem para a mulher? É isso? Aquela que te pediu a Revista?
‘Jerusa. Pois é, fiz pior, trai Braz e ainda dei o endereço do Colecionador’
‘E agora? Ela já foi lá? Você disse que o sujeito era estranho’
‘Falei Assustador’
‘Afanes, acho melhor você avisar o Braz e dar um jeito de impedir da moça ir até lá.’
‘Tarde demais’.
‘Pode ir, vai, eu seguro as pontas, o Bar hoje só tem aquele pessoal chato, aquelas conversas legais não acontecem mais, veja você que…’
‘Desculpa te cortar Volta. Fui! Agora tenho que proteger a moça’
‘Ah, então tu estás interessado, já entendi tudo’. E fez a mímica onisciente, de quem acerta tudo.
Afanes acionou um taxi do ponto mais próximo para ir tentar salvar Jerusa.
Continua