Disputas entre houses misturaram moda, dança e símbolos nacionais em encontro potente
No último sábado (5), a Orla Morena foi palco de uma verdadeira explosão de cor, corpo, arte e resistência. A segunda edição da Kiki Ball Brasilidades, realizada dentro da programação do Campão Cultural 2025, celebrou a cultura ballroom em sua essência: potência, liberdade e comunidade. Comandada pela carismática hostess Afrodite Fetake, a ball reuniu performers de várias houses de Mato Grosso do Sul, em uma noite vibrante de disputa, acolhimento e afirmação de identidades.
A cultura ballroom surgiu em Nova York entre as décadas de 1960 e 1970 como uma resposta à marginalização sofrida por pessoas negras e latinas LGBTQIAPN+. Dentro desses espaços, formam-se as chamadas houses, verdadeiras famílias escolhidas, criadas por e para pessoas que muitas vezes foram expulsas de casa ou rejeitadas socialmente. Cada house é liderada por uma mother ou father, figuras que acolhem, orientam e cuidam de seus integrantes, os children. Além de oferecer suporte emocional e social, as houses funcionam como núcleos criativos e de treino para os balls, onde competem entre si em diferentes categorias, que misturam dança, moda, beleza, performance e crítica social. Em comum, todas são atravessadas pela ousadia, criatividade e pela certeza de que ali, cada corpo importa.
Com o tema “Brasilidades”, a ball deste ano no Campão Cultural propôs uma leitura crítica, divertida e inventiva do que significa ser e parecer brasileiro. Desde a maquiagem até os movimentos do corpo, cada categoria levou para a passarela elementos da cultura popular, da ancestralidade, da arte, da sensualidade e do cotidiano. Foram dez categorias, cada uma com sua proposta estética e técnica, julgadas por um painel de jurades experientes, que analisavam presença, execução, figurino e autenticidade.
Entre as houses participantes estavam a House of Hands Up MS, House of Bombshells, House Le Cinq, House of Skill, Casa Sherman, além das estreias da Casa de Abya Yala e da Femme Queen of House de Lá, em Mato Grosso do Sul. A primeira homenageia a ancestralidade afro-indígena da América Latina, enquanto a segunda destaca o protagonismo de pessoas trans na história do ballroom.
“Quando uma casa abre, ela precisa ser recebida com muito amor, carinho e acolhimento, porque vai se inserir na cena”, afirmou Afrodite Fetake, hostess da noite e voz que guiou o público ao longo das performances. “A cultura ballroom é sobre isso: um lugar seguro onde a gente possa ser vulnerável. Aqui é permitido errar, chorar, colocar força e depois devolver isso em forma de arte na passarela. Isso é resistência, é proteção mútua, é celebração da vida.”
Brasilidades – Em uma noite de celebração, a ball trouxe dez categorias com temas que celebram a diversidade e a riqueza cultural brasileira. Em Best Make, o desafio era traduzir, por meio da maquiagem, elementos da fauna do país, com foco na técnica, na criatividade e na representação simbólica.
Na Baby Hands Performance, as mãos assumiram o protagonismo. Os competidores contaram histórias por meio de movimentos coreografados — giros, cliques, “tip our taps” e waves — destacando as mãos com luvas ou unhas nas cores da bandeira brasileira. A categoria exigia precisão, ritmo e expressividade, em conexão direta com o tema “Resgate o orgulho”.
Inspirada na Festa do Peão de Barretos, a categoria Runway homenageou um dos eventos culturais mais populares do Brasil. Para conquistar os jurados, os participantes precisaram mostrar domínio da passarela com poses fashion e pivôs, tudo isso vestindo trajes que evocavam o imaginário do universo boiadeiro.
Na Baby Old Way, a referência foi o Campeonato Brasileiro e outras modalidades esportivas. Os performers incorporaram elementos como linhas retas, simetria, figuras geométricas e precisão nos movimentos — características do estilo “Old Way” — com gestos inspirados em atletas, desde jogadores de futebol até ginastas e tenistas.
Baby Commentator vs Commentator levou ao palco a arte da fala improvisada. Inspirada em Jorge Lafond e sua icônica personagem Vera Verão, a categoria celebrou a força do corpo negro na mídia e na cultura pop. Os comentaristas usaram rimas, flow, ritmo, onomatopeias e humor para engajar o público, além de citar o bordão clássico “Epaaaaa!”.
Na categoria Face, o tema foi Carnaval, com destaque para a confiança e a beleza. O julgamento se concentrou na estrutura do rosto, carisma e impacto visual, com ou sem maquiagem, mas com o brilho obrigatório do glitter no rosto, cabelo ou figurino. Uma celebração da autoestima em sua forma mais pura.
Baby Vogue Femme se inspirou na icônica “Garota de Ipanema” e no Posto 8, ponto de encontro tradicional da comunidade LGBTQIAPN+ na praia carioca. A categoria exigiu domínio dos cinco elementos da técnica Vogue Femme: hands performance, catwalk, duckwalk, floor performance e spin & dip. Além disso, o uso de uma canga era obrigatório, evocando a leveza e a sensualidade praiana.
Em Lips Performance, o desafio foi dublar músicas brasileiras com perfeição. Um dos destaques foi Zahara Lux Unic, estudante de teatro da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS), que homenageou Ney Matogrosso, em sua fase Secos e Molhados. “Ney é uma potência, uma figura de resistência que ousou se expressar em uma época muito mais difícil, politicamente e socialmente. E continua aí, presente, relevante, impactando com sua arte. Ele representa muito do que é o nosso estado — esse lugar de mistura, de fronteira, de muitas influências culturais convivendo. E ele traduz isso com originalidade”, pontuou. Outro fator fundamental na escolha foi a forma como o Ney constrói sua imagem estética e de gênero. “Ele trouxe uma androginia que desafiava os padrões, não se prendeu a rótulos, criou entre o masculino e o feminino. E isso é pura linguagem artística. A arte permite isso: romper barreiras, brincar com os símbolos e criar com liberdade. E é exatamente esse espírito que eu quis trazer com ele”, explicou.
A categoria Baby Runway trouxe como referência dois personagens icônicos do folclore amazonense: o Boi Rasgadinho e o Boi Boiola. Os competidores desfilaram com looks inspirados nos bois, incorporando símbolos obrigatórios, uma flor ou uma borboleta, e estilos diversos, que variavam da sinuosidade à elegância retilínea.
Fechando a noite, a categoria Joga a Raba homenageou o estilo Mandrake, surgido nas periferias brasileiras. A performance precisava misturar coreografias de rebolado com criatividade e irreverência, usando pelo menos um item mandrake clássico, como óculos Juliet, camiseta de time, tênis de mola ou chinelo Havaianas. Uma explosão de identidade urbana e liberdade corporal.
Energia – A presença da ballroom no Campão Cultural, um dos maiores festivais de arte do estado, representa muito mais do que um show — é uma vitória simbólica. “Eles querem nos jogar nas margens, mas é nas margens que a gente encontra as nossas”, disse Afrodite, com firmeza. “E juntas, a gente vem pro centro, vem pra Orla, vem pro palco. Ninguém mais precisa estar sozinha.”
Quem assistia da plateia também sentiu a potência do que estava acontecendo. A professora Simaria Caetano, que veio de Bodoquena para acompanhar a apresentação da filha Gabi, resumiu a emoção: “Eu vejo só alegria, só força, só vida. Não consigo ver nada negativo. É tão bonito de ver essa energia, essa vitalidade, essa coragem. A criatividade deles é fascinante, transforma coisas simples em algo grandioso. Saio daqui gratificada. Um exemplo a ser seguido.”
A Kiki Ball Brasilidades mostrou que a arte, quando feita com verdade e coletivo, é capaz de mover estruturas e, ao som dos dips, das palmas e das chants, segue abrindo alas para que mais corpos dissidentes brilhem, resistam e dancem no centro do palco.
texto: Evelise Couto
fotos: Marithê do Céu