Quando em agosto de 1897 Euclides da Cunha, então correspondente do jornal O Estado de São Paulo, desembarcou nos sertões da Bahia com intuito de escrever sobre os acontecimentos que se passavam naquela terra ignota, abrigo de um povo esquecido que encontrara na fé e na luta o imperativo para sua sobrevivência, o autor de Os Sertões vaticinou: “O sertanejo é antes de tudo um forte”.
Por outro lado, Euclides, dada a influência do determinismo geográfico, teoria sustentada durante o século XIX, que propugnava a explicação científica do homem através do meio no qual habitava, também apontou que a civilização haveria de conduzir o “esmagamento inevitável das raças fracas pelas raças fortes”. As contradições existentes em Os Sertões são inúmeras e já foram objeto de discussões pelos estudiosos em variados campos do conhecimento desde a publicação da 1ª edição em 1902.
Portanto, não me reterei em ampliar ou aprofundar esse debate, pretendo expor a Canudos de agora, aquela que pude ver com meus olhos sob a luz do sol brilhante e de um céu que se destaca por um azul único, azul que remete à impressão de que o mar banha os sertões pelo alto.
Coincidentemente, em meados de agosto deste ano, mesmo mês em que há 124 anos, pisara naquele solo o Dr. Euclides da Cunha, estive em Canudos. Tomado por uma inquietude permanente desde a leitura de Os Sertões que me instigava a conhecer o lugar, palco de um dos momentos mais significativos da história brasileira, o que Ariano Suassuna classificou, parafraseando Machado de Assis, como a luta do Brasil Oficial contra o Brasil Real. Ali ocorrera, sobretudo, um choque entre a civilização urbana do litoral, privilegiada e ativa nas decisões da incipiente República e um agrupamento de despossuídos que, vítimas do abandono e da opressão, ainda tinha seu destino agravado pela rudeza climática do sertão. O resultado desse embate todos já conhecemos e isso só foi possível graças ao livro vingador do Dr. Euclides que escancarou e causou perplexidade, tamanha a brutalidade cometida contra um povo que ansiava por dignidade e já travava ali uma luta permanente pela sobrevivência. Alguns anos depois, a Campanha de Canudos, revelada através de Os Sertões serviu de fonte clássicos como A guerra do fim do mundo, do nobel de literatura, o escritor peruano Mario Vargas Lhosa e de Canudos, o povo da terra, do professor e historiador Marco Antonio Villa.
Cheguei ao entardecer de uma sexta-feira, após percorrer 600 Km saindo do litoral chuvoso e de céu turvo; logo avistei o pórtico na entrada da cidade que replicava a famosa frase cunhada por Euclides da Cunha sobre a força do sertanejo. Tratei de me acomodar ligeiramente pois, dali a alguns minutos teria uma aula um curso que iniciei naquele dia, aula essa ministrada em Campo Grande-MS, mas transmitida pela internet, coisa da pandemia.
No dia seguinte recebi João Batista, guia e estudioso sobre a epopeia de Canudos que me conduziu aos pontos mais importantes daquele lugar que substituiu os estalidos das carabinas, bacamartes e canhões pelo silêncio, cortado algumas vezes por rajadas de vento que faziam subir uma poeira fina entre as faveleiras, juazeiros e macambiras presentes por toda parte. À medida que avançávamos no roteiro traçado, João Batista fazia questão de me apontar cada detalhe sobre os desdobramentos da guerra e especialmente sobre a maneira rudimentar, mas eficiente de que dispunha o sertanejo naquela disputa entre Davi e Golias.
Vi tudo, com exceção de alguns espaços que se encontravam fechados para visitação, em razão da pandemia. Vi a Canudos de ontem, afundada nas águas da barragem do Cocorobó como se ali houvesse a tentativa de apagar a memória, destruir um passado, negar a existência de um erro histórico; não, isso não é possível, pois como disse o próprio João Batista, “Canudos virou uma ideia e as ideias não se apagam” e de fato, isso não é uma metáfora, a Canudos de hoje possui um bom potencial econômico, talvez ainda não desenvolvido em sua inteireza, mas a força do sertanejo fez surgir algumas monoculturas através da técnica de irrigação utilizando as águas do Cocorobó.
Canudos de hoje guarda viva a memória da Canudos de ontem e segue a marcha da história alimentando-se de trabalho, esperança e fé, essa última, traço indelével do sertanejo, herança de um povo forte e destemido que revela, sobretudo, o que há de melhor nesse país.
Salve Canudos! Salve o Conselheiro!!
Carlos Manoel de Farias é Bacharel em Direito pela Universidade Católica Dom Bosco, Pós-graduado em Direito Penal e Processo Penal pela Academia Brasileira de Direito Constitucional e Graduando em Letras pela Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul.