Como essa manifestação tradicional sobrevive entre a herança dos antigos e a inovação dos novos cururueiros
No coração do Pantanal sul-mato-grossense, onde o rio Paraguai serpenteia entre terras alagadas e céus abertos, uma tradição ancestral resiste ao tempo. O som firme e marcante da viola de cocho ecoa em rodas de cururu, com homens em roda entoando versos improvisados que falam de fé, amizade e da vida no Pantanal. Essa manifestação cultural, que atravessa gerações, é mantida viva por mestres como Sebastião Machado e jovens como seu neto, Bruno Ferreira, que carregam consigo a missão de preservar esse legado.
Aos 24 anos, Bruno já sente o peso e a honra de ser um dos guardiões dessa tradição. Em suas palavras, essa é uma missão de vida impossível de deixar para trás: “Acompanho desde pequeno meu avô, vivendo sempre em torno dessa vivência dele. Ele fazendo viola de cocho, tocando com os amigos, e eu ali. Conheci meu bisavô também, que fazia viola, mas eu era pequenininho. Antes de falecer, ele passou essa missão para o meu avô: ‘Não deixa essa cultura morrer’. Meu avô foi repassando pra gente e hoje estou aqui.”
Bruno cresceu entre o som das violas e as rodas de cururu, mas, como muitos jovens, também seguiu outros caminhos. Entrou para as Forças Armadas, completou os estudos, mas sempre com a cultura pantaneira pulsando em seu sangue. “Quando eu voltei do serviço militar, entrei na faculdade de Biologia justamente para estudar as madeiras usadas na viola de cocho. Não queria me desvincular disso. Minha orientadora até me disse: ‘Bruno, isso é um legado. Você não pode deixar se perder.’”
Hoje, Bruno divide seu tempo entre estudos, trabalho e a missão de manter viva a tradição do cururu. Junto com primos e parceiros, ele busca renovar a prática, quebrando antigos tabus. “Antigamente, os mais velhos não deixavam a gente entrar na roda. Era coisa só de homem maduro. Mas meu avô e os amigos dele foram abrindo espaço porque viram que, se não repassassem, ia acabar. Agora, a gente tenta trazer mais jovens e mostrar a importância.”
A pandemia de COVID-19 foi um duro golpe para os cururureiros mais antigos. “Perdemos muitos. Antes éramos uns 20, hoje no máximo 10, e alguns já bem idosos”, lamentou o cururureiro. Mas Bruno não desanima. Com apoio de instituições como a Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul e o IPHAN, ele e outros jovens trabalham para manter a chama acesa.
Memória Viva – Enquanto Bruno representa o futuro, Sebastião Machado, seu avô, é a memória viva dessa tradição. Aos 95 anos, o mestre carrega histórias que remontam a um Pantanal quase desaparecido. “Quando eu nasci, já nasci dentro de uma viola!”, brinca Sebastião, que conta que o pai o balançava junto da viola na hora de ninar. Sua infância foi marcada pelas festas tradicionais, como o Divino Espírito Santo, São Sebastião, São João, nas quais o cururu era a alma da celebração. Aos 11 anos, ele fugiu de casa. “Fui pro Paraguai, depois pra Poconé, terra da viola. Lá, aprendi de verdade.” Foi numa fazenda no Piquiri que compôs uma de suas toadas mais queridas, inspirada no canto dos pássaros:
“Canta João Pinto e canta Sabiá,
Lá no orgulho da palmeira eu também quero cantar.
Marrequinha também canta do lado do Pantanal,
Eu também quero cantar no Porto de Corumbá.”
Essa música, esquecida por anos, foi resgatada quando um amigo a encontrou gravada e a devolveu a ele. “Essa toada é minha vida. Como tudo no cururu, ela vive porque foi passada adiante.”
Devoção e Resistência – O cururu não é apenas uma dança ou música, é uma expressão cultural profundamente ligada à espiritualidade e à identidade pantaneira. Diferente do siriri, que é mais festivo, o cururu tem um caráter solene, quase ritualístico.
Os versos são improvisados, muitas vezes em louvor a santos ou em homenagem a amigos. A viola de cocho, feita artesanalmente de madeiras como o angico, dá o tom grave que embala a dança.
Apesar de reconhecido como Patrimônio Cultural Imaterial pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), o cururu e a viola de cocho enfrentam ameaças. O envelhecimento dos mestres, o êxodo rural e a influência de outras culturas colocam em risco sua continuidade. Bruno reflete: “Se a gente não correr atrás, daqui a pouco só vai ter viola de cocho em museu. E não é só o instrumento, é a vivência, a roda, a história que está por trás.”
Mestre Sebastião, com a sabedoria de quem viu o mundo mudar, completa: “Antes era tudo diferente. Mas se a gente não adaptar, some. Meu neto está aí, aprendendo. Isso me deixa feliz.”
A história de Sebastião e Bruno é a história de muitas tradições brasileiras que resistem na voz e nas mãos de quem se recusa a deixá-las morrer. O cururu e a viola de cocho são mais que arte, são a alma de um povo que canta sua existência. Enquanto houver jovens como Bruno dispostos a aprender e mestres como Sebastião dispostos a ensinar, o som da viola de cocho continuará ecoando no Pantanal, levando adiante versos que falam de fé, resistência e o orgulho de ser pantaneiro.
Como diz a toada: “Eu também quero cantar no Porto de Corumbá.” E que esse canto nunca se cale.
No FAS 2025 – Na tarde de sábado (17), a Casa da Memória Sebastião Brandão, em Ladário, foi palco da Vivência Curureira, parte do Festival América do Sul Pantanal 2025. O encontro reuniu mestres e aprendizes do cururu. Entre cantorias e rodas de conversa, o momento mais simbólico foi o presente do mestre Sebastião Brandão ao jovem José Adriano, de 11 anos: uma viola, simbolizando a passagem do legado cultural. Filho do curureiro José Cabral, o menino já sonha em tocar com o pai e levar a tradição adiante com os amigos. A vivência reafirmou o cururu como uma expressão viva da cultura pantaneira, sustentada pela oralidade, pelo afeto entre gerações e pelo desejo de manter a tradição pulsando no presente e no futuro.
por Evelise Couto – ASCOM/FAS 2025
fotos Marithê do Céu – ASCOM/FAS 2025