Apesar de novas pautas ganharem espaço, as mídias tradicionais ainda possuem raízes rígidas em ideais coloniais, patriarcais e machistas. Esses discursos invisibilizam existências e calam vozes, ainda mais no cenário atual em que a censura atua de forma mascarada. O Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros prevê no Art. 6º que é dever do profissional “I- opor-se ao arbítrio, ao autoritarismo e à opressão, bem como defender os princípios expressos na Declaração Universal dos Direitos Humanos”, além de “III- lutar pela liberdade de pensamento e de expressão”. É a partir disso que o jornalismo independente surge como um grito democrático.
Em um país como o Brasil que ataca os jornalistas, esses se fazem resistência. Desde editores-chefes, repórteres a acadêmicos, novas formas do fazer jornalístico criam espaços para que debates e reflexões aconteçam por meio da veiculação de informações de qualidade. Nessa realidade, o curso de Jornalismo da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) pode ser considerado um laboratório para o surgimento de revistas independentes, criadas por acadêmicos e egressos que buscam ter suas pautas valorizadas e se mostram abertos a colaborações. Dentre esses frutos do curso, destacam-se as revistas Badaró, Hangstock, LesbÔ, Bambas e 180 (lê-se um-oito-zero).
As revistas
A Revista Badaró é o primeiro veículo de comunicação do Brasil com enfoque na produção de jornalismo em quadrinhos (JHQ ou JQ). O projeto surgiu no bar, em uma conversa entre os jornalistas Norberto Liberator (26), Leopoldo Neto (24), Mylena Fraiha (22) e o acadêmico Fábio Faria (22). Hoje conta com um corpo editorial diverso, trata dos mais variados temas, como esporte, política e a questão das drogas, além de explorar formatos multimídia, como audiovisual, podcast, matérias ilustradas e infográficos.
Voltada ao mundo do skate, a Hangstock Magazine se apresenta como “como um estúdio de criação de arte colaborativa e multidisciplinar de atuação voltada, especialmente, ao skateboarding. Nossos trabalhos variam entre o universo digital, a fotografia, o videomaking e a animação, bem como exposições analógicas, cenografia e upcycle design (reaproveitamento de materiais descartados)”, expõe o estudante de arquitetura e idealizador do projeto, Gabriel Ribas (23). Além de Gabriel, Leonardo Castro (24), que cursa medicina na UNIFENAS e Lucas Caxito (24), acadêmico do sexto semestre de jornalismo da UFMS também compõem a equipe. O projeto iniciou a partir da vontade de registrar e compartilhar momentos da adolescência através de fotografias analógicas, a revista não estava nos planos iniciais, mas se concretizou a partir da produção feita por Lucas em uma matéria da graduação. Gabriel completamenta que estão sempre dispostos a co-criar: “Felizmente, por temos assumido esse caráter de criação colaborativa, trabalhamos com várias pessoas desde o estudo preliminar até o fim de cada projeto, gostamos de manter a porta aberta”.
As acadêmicas do quarto e sexto semestres, respectivamente, Rafaella Moura (20) e Maria Eduarda Boin (20), criaram a LesbÔ, revista feminista de perspectiva lésbica, com o objetivo de amplificar as vozes de mulheres lésbicas, de forma que elas narrem suas próprias histórias e não sejam notícia apenas em casos de violências sofridas. Rafaella provoca o questionamento de onde estão essas mulheres e por que as suas existências não estão sendo mostradas: “No jornalismo convencional a gente é muito tratada a partir de ótica masculina e sempre para falar de violência, tipo ‘uma mulher lésbica foi violentada’ ou ‘uma mulher lésbica foi agredida’, nunca é para falar ‘olha que mina massa essa mulher e ela é lésbica’” e complementa seu raciocínio enfatizando que a LesbÔ fala, antes de tudo, sobre representatividade.
No caso da Bambas, sua elaboração e produção foi feita exclusivamente pela jornalista recém formada, Renata Barros (21). A revista digital é o resultado final do Projeto Experimental de Conclusão do Curso de Renata, chamado “Elas na Música”, buscando dar visibilidade à participação das mulheres na música em Campo Grande. Ela assume caráter temático, de forma que cada edição contará com um gênero musical distinto, sendo a primeira tomada pelos batuques e ritmos do samba, que podem ser ouvidos através da interatividade do site.
A Revista 180, é resultado da colaboração de seis mulheres, jornalistas e estudantes da área: Agatha Espirito Santo (28), Dândara Sabrina (23), Monique Faria (26), Mariana Alvernaz (22), Giovanna Primon (29) e Raissa Quinhonez (24). Feita de mulheres, para mulheres, a grande preocupação está em abordar assuntos com perspectiva de gênero e de forma crítica. Mesmo com responsabilidades e prazos definidos, as meninas concordam que a produção deve ser leve e sem rigidez.
O jornalismo independente no Brasil
Com grande admiração aos jornais The Intercept Brasil e Nexo, Lucas Caxito visualiza o cenário em crescimento como uma forma de tornar o jornalismo e as pautas abordadas em algo mais democrático, tendo o desenvolvimento tecnológico como auxiliador desse processo. “Eu vejo isso com muita esperança e enxergo esse cenário como o futuro. Esse jornalismo independente para mim é muito interessante, porque acompanha a transição que a gente vive na tecnologia, está completamente ligado [a isso]. Antigamente para fazer um trabalho jornalístico, dependia de equipamentos gigantescos e um aparato tecnológico complicado para fazer de maneira independente, dependia de uma emissora. Agora você consegue fazer tudo através do celular”, pontua Caxito.
Norberto expressa sua admiração, mas ressalta que nem tudo são flores. “Acho que tem se formado cada vez mais um nicho de iniciativas independentes, e espero que se consolide como frente aos veículos mais tradicionais, tanto para haver uma pluralidade de ideias, quanto para que os profissionais tenham um leque maior de opções em que possam atuar. Os grandes problemas do jornalismo independente são a falta de estrutura e a falta de conhecimento sobre assuntos do mundo financeiro, que em geral nós achamos algo bem chato, mas que são necessários para podermos nos firmar como alternativo. Eu realmente espero que isso seja contornado, inclusive com a ajuda mútua entre os veículos, trocando informações sobre o que já sabem e dando uma mão aos colegas ou, para ser mais poético, companheiros de trincheira”, argumenta o jornalista.
Jornalismo, academia e sociedade
Um dos debates mais presentes na academia é sobre qual retorno as universidades estão dando para a sociedade. A universidade pública, gratuita e de qualidade busca democratizar o acesso à informação, mas não são todas as pessoas que possuem oportunidades de entrar em contato com esses espaços e com os diálogos ali produzidos. Por isso, é indispensável que as graduações conversem com a localidade em que estão inseridas, e mostrem à população como os conteúdos produzidos no âmbito acadêmico interferem no sistema como um todo.
No começo de sua formação profissional, Renata achava que o jornalismo alternativo era algo muito utópico. Está sentindo as coisas borbulhando e acontecendo, mas teme que esses veículos não tenham força para se manter. Por isso, defende o estímulo a produção desse tipo de conteúdo ainda na graduação, sendo esse um momento de testes e aprendizagem, para criar e pôr em prática ideias que possivelmente seriam reprimidas no mercado de trabalho. Acredita, também, que o conhecimento científico não pode ficar retido na academia, de forma que “esses conteúdos conversam diretamente com as coisas que a gente vive e a gente percebe na sociedade. A graduação permite a avaliação de muitos processos sociais e a elaboração de produtos jornalísticos independentes, faz com que a gente vá além dessa análise”, comenta. Agindo, então, como um retorno para a sociedade, em um momento no qual a ciência e o conhecimento acadêmico estão sendo questionados.
“Quando a gente tem acesso à uma coisa tão valiosa que é a educação pública, a gente precisa compartilhar, independente do viés é muito importante que a gente transpareça para quem está de fora e para as pessoas que não tem tanto acesso, o que a gente pode fazer e o que estamos aprendendo a fazer lá dentro”, defende Maria Eduarda. Ela expõe as dificuldades em encontrar informações para a produção da LesbÔ, de forma que as pautas lésbicas ainda são de difícil acesso na mídia, até mesmo para quem está na academia. “É nesse ponto que a sociedade vai ser beneficiada com a revista, a gente vai dar visibilidade para outras mulheres lésbicas e tentar atingir o público mais jovem, que precisa de referência, que precisa entender que está tudo bem sua orientação sexual ser dessa forma, está tudo bem amar outra mulher. Tudo que eu não tive quando eu era adolescente e isso faz muita falta, porque a gente cresce sem saber para onde a gente vai”, defende.
No caso da Hangstock, a revista conversa diretamente com a arquitetura e o skate, que é uma expressão artística, assim, tendo conversas que extrapolam o ambiente jornalístico. “O skatista enxerga a cidade de uma maneira completamente diferente de uma pessoa que não anda de skate. Um simples meio fio, o banco de uma praça, tudo é um obstáculo, tudo é ‘skatável’, vai depender apenas da criatividade e do estilo do skatista para colocar em prática a manobra, seja qual obstáculo for”, pontua Lucas e complementa: “Eu acho que o ponto em que tudo isso se junta é quando a arquitetura e o skate se unem através da arte, do momento, e tudo isso é publicado, assim, outras pessoas podem desfrutar disso através de uma produção impressa ou de um vídeo”.
Essas pautas atingem a sociedade como um todo, chamando a atenção para elas e para a produção jornalística, não só autônoma, mas também de profissionais ainda em formação. Os temas ultrapassam as bolhas em que estão inseridos e provocam questionamentos àqueles que consomem esses conteúdos.
Visibilidade do curso
Raissa compartilha que a 180 busca sempre os dois lados dos fatos, através de muita pesquisa, para gerar um pensamento crítico nos leitores. Ela enxerga o jornalismo alternativo como mais livre, de forma que essa liberdade é benéfica para a valorização do curso de jornalismo. “Todo mundo tem um potencial muito grande no nosso curso, o que às vezes não é tão explorado, tanto na graduação quanto no mercado de trabalho. É uma forma da gente trabalhar com o que gosta, o que a gente se interessa”, ressalta a estudante.
Apesar da Badaró não ser focada apenas no Mato Grosso do Sul, Norberto conta que, ao conhecerem a história da revista, há quem diga “nossa, que legal, foi uma iniciativa que surgiu quando estavam no curso então”. Ele acrescenta que “quando o público vê algo novo, e ainda mais no nosso contexto que são veículos com um público mais jovem, as pessoas querem saber quem são esses profissionais, de onde eles vêm. E aí não tem como dissociar do Jornalismo UFMS, nossa casa”.
A vasta gama de assuntos abordados por essas revistas atrai pessoas para a informação através das diversas maneiras com que ela se apresenta. A imprensa independente ao assumir caráter diverso, reconhece a diversidade presente na sociedade e na sua dinâmica de existência. Gritos passam a ser ouvidos, mesmo que a passos lentos, e novos discursos entram em pauta. Esses veículos surgem para lembrar que não existe democracia sem pluralidade e sem imprensa livre.
Acesso aos conteúdos
Badaró: instagram @revistabadaro e site
Hangstock: instagram @hangstock
LesbÔ: instagram @revistalesbo
Bambas: instagram @revistabambas e site
180: instagram @revista180 e site
Páginas do curso de Jornalismo da UFMS: instagram @jornalismoufms e site